Pego de empréstimo o título do artigo de 2008 de Michael Hand para abordar uma discussão que sempre gera muitos debates quando falamos de ensino de temas controversos.
Pare um minuto para refletir: O que devemos ensinar como controverso? Todas as discussões que geram controvérsias na sociedade devem ser ensinadas como controversas?
À primeira vista essas questões parecem bastante triviais. Ora, se um assunto desperta controvérsias na esfera pública, nas redes sociais, no Congresso Nacional ou em outros espaços de grande repercussão, então devemos ensiná-lo como controverso. Isso significaria apresentar diferentes pontos de vista de forma equilibrada, com a mesma dedicação, tempo e clareza na sala de aula. Isso pode fazer sentido para alguns temas, mas pode gerar impactos extremamente negativos em outros casos.
Vejamos o caso do racismo. Este é certamente um tópico que abarca discussões muito intensas no Brasil e outros países. Imagine que um professor esteja planejando discutir esse tema em suas aulas e ele pense: “o racismo é um tema controverso, logo, devo ensiná-lo como controverso também”. Ensinar como controverso, nesse caso, poderia levar a uma situação em que visões racistas e antirracistas fossem apresentadas como equivalentes e igualmente legítimas. Isso, claro, é inaceitável, já que o racismo envolve violações de Direitos Humanos individuais, coletivos e culturais.
Episódios de injúria, violência física e outras formas de discriminação baseadas na raça têm ganhado visibilidade na mídias tradicional e sociais e personalidades se posicionam ativamente de forma antirracista. No âmbito legal e político, esses temas têm sido intensamente disputados nas últimas décadas. A legislação brasileira prevê os crimes de injúria racial e racismo – recentemente equiparados. No campo Educacional, a lei 10.639/03 (ampliada na lei 11.645/08) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica são instrumentos legais importantes que lançam os eixos para essas duas modalidades educacionais. A lei de reserva de vagas pela raça, chamada lei de cotas, também foi um importante avanço no combate ao racismo e à desigualdade de acesso à universidade.
Dessa maneira, há uma miríade de argumentos para sustentar que uma aula sobre racismo deve ter como premissa básica que os alunos entendam que o racismo é algo ética e politicamente inaceitável e que deve ser combatido por todos, independente de sua cor/raça. Assim, não faz sentido que o racismo seja ensinado como controverso.
Mas, então, como poderíamos definir o que ensinar ou não como controverso? Hand (2008) defende que seja utilizado o critério epistêmico para isso. De acordo com esse critério, cunhado por Dearden (1984), só devem ser ensinadas como controversas aquelas questões para as quais existem diferentes pontos de vista e que essas posições não sejam contrárias à razão. No caso do racismo, como é uma forma de discriminação que viola a dignidade humana e direitos humanos fundamentais, é contrário à razão. Portanto, não deve ser ensinado como controverso.
Outro critério, proposto por Hess (2009) e Hess e McAvoy (2015), é o critério politicamente autêntico, pensado por elas para ser aplicado quando falamos de questões políticas. Por esse critério, um tema deve ser ensinado como controverso quando há tração suficiente na esfera pública, isto é, quando grupos de interesse e/ou muitos indivíduos se mobilizam em torno dele, gerando protestos ou proposições legislativas, por exemplo. No caso do racismo, esse critério se aplicaria mais especificamente a políticas que estejam relacionadas a questões raciais. Nesse sentido, uma questão como “quais seriam as melhores políticas para se combater o racismo” poderia ser ensinada como controversa.
Por fim, outros autores não centram sua análise em buscar um critério específico. Levinson (2006), por exemplo, adota um quadro teórico que foca na descrição de controvérsias e de que maneira o ensino delas pode ocorrer. Sætra (2019), por sua vez, diz que não é possível definir um critério único aplicável a todas as questões controversas, sendo necessário avaliá-las em seu próprio contexto e momento. Tanto um quanto outro, contudo, tratam a dignidade humana como um pressuposto fundamental da educação escolar. Logo, não caberia ensinar o racismo como controverso.
Dessa forma, não há um consenso entre especialistas de como definir o que ensinar como controverso. O que podemos afirmar com base na literatura é que:
- Preconceitos e discriminações devem ser rechaçados;
- Deve-se fazer uso de evidências científicas, sempre que possível;
- Os alunos devem ser estimulados a analisarem as evidências disponíveis e sempre adotarem uma postura crítica com relação às suas próprias ideias;
- É preciso adotar estratégias para que os alunos vejam a sala de aula como um ambiente seguro para compartilharem suas ideias, respeitarem e serem respeitados pelos seus colegas.
Por fim, para além desses pontos, o contexto também é fundamental. Assim, embora muitos professores desejem discutir determinados temas, por vezes, acabam sofrendo censura – da gestão da escola, de pais e até mesmo de políticos – ou se autocensuram, com medo de represálias. Não há dúvida, portanto, que o ensino de controvérsias é um enorme desafio educacional
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Referências
DEARDEN, R. F. Controversial issues and the curriculum. Journal of Curriculum Studies, v. 13, n. 1, p. 37-44, 1981. Disponível em: https://doi.org/10.1080/0022027810130105
HAND, Michael. What should we teach as controversial? A defense of the epistemic criterion. Educational Theory, v. 58, n. 2, p. 213-228, 2008. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/j.1741-5446.2008.00285.x#:~:text=The%20answer%20suggested%20by%20Robert,views%20being%20contrary%20to%20reason.
HESS, Diana. Controversy in the classroom: the democratic power of discussion. New York: Routledge, 2009.
HESS, Diana, MCAVOY, Paula. The political classroom: evidence and ethics in democratic education. New York: Routledge, 2015.
LEVINSON, Ralph. Towards a theoretical framework for teaching controversial socio-scientific issues. International Journal of Science Education, v. 28, n. 10, p. 1201–-1224, 2007. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/09500690600560753.
SÆTRA, Emil. Teaching controversial issues: a pragmatic view of the criterion debate. Journal of Philosophy of Education, v. 53, n. 2, p. 323-339, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1111/1467-9752.12361.




